quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Coração de melão...

Silêncio estranho pela casa, apesar do barulho da rua, dos telefonemas, das teclas. Normalmente costumavam ver a TV enquanto usavam seus computadores, cada um a sua moda. Um matava o tempo entre pesquisas sobre tudo e qualquer coisa que lhe viesse a cabeça ou lhe fosse levemente sugerido e aquários virtuais. Outro vivia entre milhões de pessoas, alguns caracteres, muita informação e poucos devaneios que valham em um mundinho que era só dele e só ele era capaz de absorver. Em um dia normal, existia uma rotina pré-estabelecida pela força do tempo. Um se ocupava com afazeres gerais, dobrando uma roupa aqui ou cozinhando algo preocupadamente trivial ali, subtraindo a falta do que fazer naquele mundo de gigabytes. Outro seguia compenetrado, vez ou outra chamando a atenção para algo estupidamente genial ou singularmente esquisito que filtrara por entre aquela enormidade de mundo quadrado em seu colo. Em um dia normal, as coisas corriam nesse sentido esquecido entre o agora e o que não vai para frente.

Mas hoje era uma dia diferente. Como uma Teoria do Cisne Negro, um evento. Baseado nos critérios de Nassim Nicholas Taleb:

- O evento é uma surpresa (para o observador)
- O evento causa um grande impacto.
- Após o ocorrido, o evento é racionalizado por percepção tardia, como se tivesse sido cogitado.

Hoje era um daqueles dias conhecidos, mas não muito comuns em que aqueles dois eram feito dois estranhos. Imagine você, dentro de uma daquelas tramas Hollywoodianas deliciosamente esquecíveis, sendo jogado em meio a uma casa onde tudo era altamente familiar, mas nem um pouco confortáveis, visto que um estranho vivia ali, e ao que tudo indicava ele o fazia a muito tempo. E sabia seu nome. E quem você era. Era por ai, mas não assim tão mistificado.

Aqueles dois já se conheciam de longa data. Já sabiam de seus horários, suas muletas e suas alergias. Um era altamente controlado no que dizia respeito ao bom funcionamento dessa rotina já dissertada, desde os itens que não podiam faltar na geladeira até a medida em se manter presente mas em silêncio mesmo quando o que queria era ouvir música alta. Outro era uma figura bem estabelecida, e nada podia abalar aquela estrutura tão bem construída pelos anos de historias e acontecimentos que Um apenas supunha conhecer. E por essa história ser baseada em fatos observados por Um e ele mesmo ser o autor do descrito, as informações referentes ao Outro certamente são nada mais do que uma profunda reflexão de Um (que se considera um bom bom perceptor pero no mucho).

Tudo começou com uma lasanha de berinjela, seu preparo e o desastroso decorrido durante o ato. Um, como reza a lenda de todo bom virginiano, estava naqueles dias que só mulheres sentem uma vez por mês, mas que (fato) homens nascidos entre 24 de agosto e 22 de setembro adquirem por alguma osmose lunar obscura. Preocupado com a quantidade de queijo na geladeira junto com o desejo pelo prato anunciado por Outro, se aventurou na construção daquele sitio arqueológico vegetariano que lhe era tão desconhecido, a contra gosto, afinal era um daqueles dias. O Outro por sua vez, mal acostumado (como ele próprio afirmara) com aquele comodismo, seguia anunciando para o mundo virtual os cuidados do amado sem perceber a barbatana de tubarão que rondava sua prancha. Outro, seguindo seus instintos de diretor, organizador ou reparador (essa eu deixo para você escolher) decidiu comentar a respeito do preparo, dos sabores adicionados, dos cheiros que saltavam, do aspecto que nascia na forma velha para assar. E sem medir o tamanho que as palavras iam adquirindo aos ouvidos de Um, Outro perdeu a mão como um cozinheiro perde a mão no sal da comida.

E então o Cisne Negro bateu suas asas, como uma noticia ruim que chega ao telefone. Em algum período compreendido entre a entrada do prato ao forno e sua resolução, o gás chega ao seu trágico fim. Assim, silencioso, sem aviso. Para o desespero de Um, para a confusão de Outro. Porque Um parecia tão derrubado, tão velho feito um colhedor de maçãs no sul do Chile em pleno solstício de verão?

E esse foi o causador do evento estranho que pairava na casa. Enquanto Um tentava seguir com seus já conhecidos afazeres, mas sem o menor esforço, Outro parecia castigá-lo com uma atitude fuck off, saindo em horários desconhecidos e voltando sabe-se lá de onde depois de algumas horas que pareciam anos. E como já foi dito, era um dia conhecido, mas não habitual. Nesse dia, Um resolveu desafiar sua própria lei de se botar como vítima, de assumir a culpa, de submisso e se calou. Se segurou por mais de uma dezena de vezes, mas se calou. Estava disposto a chorar em silêncio, debaixo do chuveiro ou na cama aconchegada muito mais cedo do que o habitual antes de dirigir palavra. Só para ver no que dava, só para suprir uma necessidade mórbida de entender aquela atitude do Outro, que lhe causava tanta dor mas o que é a dor se não algo que não estamos dispostos a encarar? No seu mundinho de medos infantis e psicoses com faca de algodão, imaginava as piores resoluções para sua atitude, tentando encontrar no meio daquele emaranhado de pesadelos um pequeno patinho feio e negro. Como nunca foi capaz de sonhar, ou melhor, de lembrar do que sonhava, era expert em dilacerar um mundo em profecias catastróficas. Mas estava decidido, superaria aquele silêncio com latas de cerveja e barras de chocolate até que o Outro desse o primeiro passo rumo aos velhos hábitos.

2 comentários:

Anônimo disse...

Apocalíptico, intenso, mas vivo. Inteiramente vivo.

... E "Como nunca foi capaz de sonhar, ou melhor, de lembrar do que sonhava, era expert em dilacerar um mundo em profecias catastróficas. "

Unknown disse...

"matava o tempo entre pesquisas sobre tudo e qualquer coisa que lhe viesse a cabeça ou lhe fosse levemente sugerido" - me identifiquei com essa parte!

bom,
e assim vai... um dia depois do outro...
beijocas, nando!